Maladaptive Daydreaming: O vício do devaneio excessivo
- Rafaela Santo
- 14 de nov. de 2021
- 5 min de leitura
E se tivesses a capacidade de criar o teu próprio mundo?
O teu universo pessoal onde tudo acontece exatamente como tu queres.
Onde podes dizer e fazer qualquer coisa sem consequências reais.
Escolherias sair?
Este é o dilema que o vício do devaneio excessivo representa.

O professor de psicologia clínica Eli Somer introduziu o conceito de devaneio excessivo (Maladaptive Daydreaming) em 2002. [1]
A partir daí uma característica que muitos psicólogos categorizavam como um indicador de dissociação passou a ter uma definição própria. Em 2016 Eli e seus colegas conseguiram validar este fenômeno e criar um instrumento de avaliação para medir o devaneio excessivo. [9] Em 2017 criaram também uma proposta de critérios diagnósticos para a perturbação de devaneio excessivo. [10]
Somer, descreveu o devaneio excessivo como um estado de fantasia intenso que substitui a interação humana, interferindo negativamente na vida do individuo. [1] Referindo-se ao devaneio excessivo como uma resposta desadaptativa a um traço de personalidade, ao qual ele dá o nome de immersive daydreming (devaneio imersivo). Uma habilidade onde a pessoa é capaz de se imergir por completo num estado de fantasia profundo e criar histórias elaboradas na sua cabeça. Este sonho imersivo é por norma descrito como algo muito recompensante e prazeroso. [2]
E como tudo o que é prazeroso, parece ter a capacidade de se tornar aditivo.
Conforme a pessoa passa por experiências traumáticas, aprende o peso das suas responsabilidades e é forçada a enfrentar os problemas da vida, a característica parece ter tendência a tornar-se num mecanismo de defesa desadaptativo. [2, 3, 6]
Esta defesa tende a refletir um problema mais profundo, representando uma forma facilitada de escapar à realidade quando ela se torna demasiado difícil.
Como tal, não é surpreendente que o devaneio excessivo esteja frequentemente associado a outras perturbações, como: perturbação de défice de atenção e hiperatividade, perturbações de ansiedade, perturbações depressivas e perturbações obsessivo-compulsivas. [4]
Em estudos recentes, os investigadores descobriram que as histórias criadas pelo devaneio excessivo podiam variar de pessoa para pessoa. Estas podiam ser tão simples como planear um evento futuro ou tão complexas quanto desenvolver enredos complexos e criar personagens específicas. Fora das cabeças dos “sonhadores”, podiam existir também sinais comportamentais visíveis. Durante o devaneio, as fantasias podiam ser acompanhadas por comportamentos físicos e vocalizações. [5]
O devaneio excessivo torna-se assim um problema difícil de manejar para o individuo, quando por viver no seu próprio mundo de fantasia, este negligencia a realidade á sua volta. Quebra a conexão necessária entre o mundo que existe dentro das nossas cabeças e o mundo real externo, a maneira como nos conectamos com os outros e nos expressamos.
As fantasias geralmente representam para a pessoa a vida que gostaria de estar a viver. Vivendo na sua própria cabeça, os sonhadores desligam-se de quem realmente são. Dissociando dos seus medos, problemas, inseguranças e emoções. [7]
No mundo de fantasia, a sua vida é segura, têm controlo sobre tudo, sem risco de se magoar ou desiludir.
As fantasias que produzem na sua mente servem como lembrança de como é estar vivo e ser livre.
Deixar de lado este mundo inventado e a personalidade que desenvolvem nos seus sonhos pode ser extremamente difícil. Pois pode ser encarado como uma renúncia a uma parte da sua identidade e a um mundo que às vezes parece mais real que a própria realidade. [2]
Ainda não é claro quanto desta experiência a pessoa pode controlar conscientemente. As pessoas que sofrem desta perturbação muitas vezes descrevem que o seu devaneio tem qualidades viciantes ou compulsórias. [8]
Um bom exemplo de devaneio excessivo é encontrado no filme “A Vida Secreta de Walter Mitty” (atenção, spoilers). Walter existe em dois mundos: a pessoa conformada que ele é na realidade e a pessoa que quer ser, que só existe na sua mente.
Ele acaba por embarcar numa viagem épica e ao enfrentar os seus medos, encontra uma maneira de se transformar na pessoa que deseja ser. Tendo começado a viver a vida que deseja, deixa de sentir a necessidade de habitar o seu mundo de imaginação.
Poderão estar a questionar-se como, num cenário real, alguém consegue sair do mundo fantástico que a sua mente proporciona para entrar no mundo real.
Vários estudos estão a ser desenvolvidos para encontrar uma resposta a esta pergunta.
Por enquanto, a resposta parece estar em encontrar a coragem necessária para sair da segurança que o espaço mental proporciona, um passo de cada vez.
Tendo a coragem de se tornar a pessoa que deseja ser.
Alguns métodos que podem ser úteis para combater o devaneio excessivo são:
Permanecer no momento presente;
Usar técnicas de grounding;
Sair do devaneio quando ele começa;
Evitar gatilhos que levam à dissociação (qualquer coisa que possa despertar os devaneios, por exemplo, música);
Gerir expectativas;
Criar objetivos S.M.A.R.T. como motivação;
Expressar emoções livremente;
Criar estratégias para lidar com o medo;
Enfrentar medos e aprender a sair da zona de conforto;
Agir de acordo com a pessoa que se deseja ser e assumir responsabilidade;
Encontrar significado nas próprias experiências;
É importante considerar que o traço em si, a capacidade de sonhar de forma imersiva, não é patológico. Na verdade, pode até ser considerado um talento que pode estar na raiz de muitos dos tesouros literários que vemos nas nossas bibliotecas, pois permite uma experiência profunda da imaginação.
Torna-se patológico quando a pessoa o começa a utilizar de forma desregulada para evitar o desconforto. Assim como passar tempo nas redes sociais, beber álcool ou jogar videojogos. Nenhum desses comportamentos é inerentemente mau ou viciante, mas podem tornar-se patológicos se os usarmos excessivamente e em situações desadequadas para evitar experienciar emoções negativas. Parte de ter uma mente saudável é encontrar um equilíbrio e saber como regular as nossas emoções de uma maneira saudável.
Bibliografia:
[1] Somer, E. (2002). Maladaptive daydreaming: A qualitative inquiry. Journal of Contemporary Psychotherapy, 32, 197–212. http://dx.doi.org/10.1023/ A:1020597026919.
[2] Somer, E. (18 de 12 de 2020). Eli Somer talks with "Maladaptive Daydreaming Italia". (M. D. Italia, Entrevistador)
[3] Schimmenti, A., Somer, E., & Regis, M. (2019, November). Maladaptive daydreaming: towards a nosological definition. In Annales Médico-psychologiques, revue psychiatrique (Vol. 177, No. 9, pp. 865-874). Elsevier Masson.
[4] Somer, E., Soffer-Dudek, N., & Ross, C. A. (2017). The comorbidity of daydreaming disorder (maladaptive daydreaming). The Journal of Nervous and Mental Disease, 205(7), 525-530.
[5] Bigelsen, J., Lehrfeld, J. M., Jopp, D. S., & Somer, E. (2016). Maladaptive daydreaming: Evidence for an under-researched mental health disorder. Consciousness and cognition, 42, 254-266.
[6] Somer, E., Abu-Rayya, H. M., & Brenner, R. (2021). Childhood trauma and maladaptive daydreaming: fantasy functions and themes in a multi-country sample. Journal of Trauma & Dissociation, 22(3), 288-303.
[7] Soffer-Dudek, N., & Somer, E. (2018). Trapped in a daydream: Daily elevations in maladaptive daydreaming are associated with daily psychopathological symptoms. Frontiers in Psychiatry, 9, 194.
[8] Somer, E., & Herscu, O. (2017). Childhood Trauma, Social Anxiety, Absorption and Fantasy Dependence: Two Potential Mediated Pathways to Maladaptive Daydreaming. J Addict Behav Ther Rehabil 6: 3. of, 5, 2.
[9] Somer, E., Lehrfeld, J., Bigelsen, J., & Jopp, D. S. (2016). Development and validation of the Maladaptive Daydreaming Scale (MDS). Consciousness and cognition, 39, 77-91.
[10] Somer, E., Soffer-Dudek, N., Ross, C. A., & Halpern, N. (2017). Maladaptive daydreaming: Proposed diagnostic criteria and their assessment with a structured clinical interview. Psychology of Consciousness: Theory, Research, and Practice, 4(2), 176.
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